MANUAL DO ESTOICISMO
O estoicismo pregava o valor da razão, propunha que emoções
destrutivas eram resultado de erros na nossa forma de ver o mundo e oferecia um
guia prático para nos mantermos resolutos, fortes e no controle.
A escola estóica teve profunda influência na civilização
grecoromana e, por consequência, no pensamento ocidental como um todo - e foi
mais além. Ela está presente no cristianismo, no budismo e no pensamento de
diversos filósofos modernos, como o alemão Immanuel Kant, além de ter
influenciado a técnica contemporânea de psicoterapia chamada Terapia
Cognitivo-Comportamental.
Hoje, adeptos ou curiosos podem "passar uma semana
vivendo como estóicos", participar de conferências, integrar grupos de
estóicos no Facebook, ouvir podcasts de todos os cantos do mundo, comprar
livros sobre o tema e aprender como as práticas e o pensamento estóico podem
ser aplicados nos esportes, nos negócios e na política.
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1. "Se devo morrer, morrerei quando chegar a hora.
Como, ao que me parece, ainda não é a hora, vou comer porque estou com
fome."
"O que Epiteto está querendo dizer aqui é que "o
que tiver de ser será. Mas se não tenho de lidar com isso agora, vou fazer
outra coisa". Massimo Pigliucci, filósofo italiano e praticante do
estoicismo hoje.
2. "Você não é aquilo que finge ser. Então, reflita e
decida: isso é para você? Se não for, esteja pronto para dizer: para mim, isso
é nada. E deixe o assunto de lado."
"Deixe para trás as coisas que não estão sob o seu
controle e tente trabalhar duro naquilo que você pode controlar." Nancy
Sherman, filósofa americana que estuda a influência do pensamento estóico sobre
a ética militar.
3. "Não espere que o mundo seja como você deseja, mas
sim como ele realmente é. Dessa forma, você terá uma vida tranquila."
"Para quem vê conformismo nessas palavras, uma
ressalva: eles não estão propondo que você seja passivo em relação à vida, mas
que aceite as coisas que estão além do seu controle e que já aconteceram",
diz o filósofo e psicoterapeuta escocês Donald Robertson.
O estoicismo foi fundado no século 3 a.C. por Zeno, um rico
mercador da cidade de Cítio, no Chipre.
Após sobreviver a um naufrágio em que perdeu tudo o que
tinha, Zeno foi parar em Atenas. Ali, conheceu as filosofias de Sócrates,
Platão, Aristóteles e seus seguidores.
"Ele se deu conta de que existia um mundo não material
que era mais previsível e controlável do que o mundo que ele tinha como
mercador. Abraçou as ideias daqueles filósofos e passou a viver uma vida
simples e fundou sua própria escola filosófica", disse Sherman.
Os primeiros estóicos criaram uma filosofia que oferecia uma
visão unificada do mundo e do lugar que o homem ocupava nele. O pensamento era
composto de três partes: ética, lógica e física.
O estoicismo propunha que os homens vivessem em harmonia com
a natureza - o que, para eles, significava viver em harmonia consigo próprios,
com a humanidade e com o universo. Para os estóicos, o universo era governado
pela razão, ou logos, um princípio divino que permeava tudo. Portanto, estar em
harmonia com o universo significava viver em harmonia com Deus.
A filosofia estóica também propunha que os homens vivessem
com virtude, um conceito que, para eles, estava intimamente associado à razão -
como explica o filósofo Donald Robertson.
"Se pudermos viver com sabedoria, guiados pela razão,
vamos florescer e realizar nosso potencial como seres humanos. Deus nos deu
essa capacidade, cabe a nós usá-la de maneira apropriada", diz ele.
O estoicismo floresceu durante dois séculos na Grécia
Antiga, e por volta do ano 100 a.C., voltou a ganhar popularidade em Roma. Os
textos e ensinamentos dessa filosofia que ainda sobrevivem datam desse período.
Um dos mais conhecidos pensadores dessa época é Sêneca,
conselheiro do infame imperador romano Nero. Em uma carta a seu amigo Lucílio,
o filósofo fala sobre um dos componentes centrais da virtude: a habilidade de
nos blindarmos contra o infortúnio.
"A maioria dos homens míngua e flui em miséria entre o
medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver, e
ainda não sabem como morrer. Por essa razão, torne a vida como um todo
agradável para si mesmo, banindo todas as preocupações com ela. Nenhuma coisa
boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a
possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que
aquilo de que, quando perdido, não se sente falta. Portanto, encoraje e
endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os mais poderosos."
A ideia central dessa carta é a de que devemos não apenas
estar preparados para enfrentar as dificuldades da vida - devemos também nos
preparar sempre para o pior, explica o italiano Massimo Pigliucci, filósofo e
estóico contemporâneo.
"Um exercício muito comum entre estóicos é você se
preparar para alguma situação crucial que deve enfrentar perguntando a si
mesmo: qual seria o pior desfecho possível para essa situação?"
"A lógica por trás disso é, primeiro, se você já sabe
qual seria o pior resultado possível, pode começar a se preparar para ele.
Segundo, o exercício serve para lembrar você mesmo de que, se o pior acontecer,
você é perfeitamente capaz de lidar com isso. E na verdade, na maioria das
vezes, o pior não acontece".
Muitos diriam, no entanto, que para Sêneca o pior aconteceu:
acusado de participar de um complô contra Nero, ele acabou cometendo o suicídio
por ordem do imperador. O filósofo, por sua vez, talvez questionasse: "O
que é mesmo esse pior?"
Isso porque, para os estóicos, a morte não é necessariamente
ruim, e a riqueza não é necessariamente boa, explica o escocês Robertson.
"Para os estóicos, a vida não é em si uma coisa boa, é
uma oportunidade. E o que importa é o que fazemos dela. Um sábio, um homem ou
uma mulher bons podem fazer algo útil com suas vidas, uma pessoa má ou tola
pode fazer algo ruim com suas vidas. E o mesmo vale para qualquer coisa que os
estóicos consideram estar fora do nosso controle, como, por exemplo, nossa
saúde, nossa riqueza ou nossa reputação. Essas coisas são vantagens que a vida
nos dá, mas não são intrinsecamente boas. Um homem mau pode usar sua riqueza e
reputação para fazer coisas terríveis. Mas nas mãos de uma pessoa boa, essas
coisas podem ser usadas para fins bons", diz Robertson.
Os estóicos também tinham uma visão particular sobre as
emoções - chamadas de paixões - que dividiam em três categorias: emoções boas,
ruins e indiferentes.
Eles propunham que devíamos colocar nosso foco nas emoções
ruins, ou pouco saudáveis, aprendendo a lidar com elas.
Admirado por filósofos ao longo dos séculos, o famoso ensaio
Sobre a Ira, de Sêneca, propôs formas de lidarmos com esse sentimento.
"Sêneca sugere o seguinte: Você tem uma visão a
respeito de algo ruim que aconteceu. Mas você pode mudar sua opinião sobre
aquilo. (Pode dizer a você mesmo que) não foi tão mau assim, que foi um
acidente, que a pessoa não tinha essa intenção, ou, que isso não é importante
para você", explica Nancy Sherman.
Volta à cena Epiteto, um ex-escravo que viveu no século
primeiro da era cristã. No trecho a seguir, extraído do seu manual, ele reflete
sobre esse mesmo tema - as paixões e como lidar com elas.
"Os homens são perturbados não pelas coisas, mas pelas
opiniões que eles têm delas. A morte, por exemplo, nada tem de terrível, senão
tê-lo-ia parecido assim a Sócrates. Mas a opinião que reina em relação à morte,
eis o que a faz parecer terrível a nossos olhos. Por conseguinte, quando
estivermos embaraçados, perturbados ou penalizados, não o atribuamos a outrem,
mas a nós próprios, isto é, às nossas próprias opiniões. Quem acusa os outros
pelos próprios infortúnios revela uma total falta de educação; quem acusa a si
mesmo mostra que a sua educação já começou; mas quem não acusa nem a si mesmo
nem aos outros revela que sua educação está completa".
Essas palavras representaram uma verdadeira revelação para
muitas pessoas ao longo dos séculos e até hoje, diz Robertson.
"Ele está dizendo que são nossas opiniões sobre as
coisas que vão determinar se vamos ou não ficar incomodados a respeito delas.
Na verdade, são nossas opiniões que vão determinar nossas emoções mais fortes.
E indo ainda mais longe, são os nossos juízos de valor, baseados em nossas
crenças e valores mais profundos, que nos levam a ficar aborrecidos em relação
às coisas".
"Mas em vez de tentar suprimir (essas emoções), devemos
confrontar as crenças que levam a elas, transformando-as em emoções
saudáveis", explica o filósofo e psicólogo Robertson.
E sobre aquela terceira categoria, a das emoções indiferentes,
a ideia era simplesmente ignorá-las.
"Essas são reações emocionais involuntárias. São a sua
primeira reação em relação a algo, talvez algo que pegou você de surpresa, e
você sente sua pressão sanguínea subindo. Para os estóicos, essa não é uma
emoção completa, não está inteiramente sob o seu controle. Então, eles dizem
que, em vez de lutar contra elas, você deve encará-las como naturais,
inevitáveis. Devem ser vistas com indiferença."
A busca do auto-controle é central à filosofia estóica. Mas
para isso é importante sabermos distinguir o que está sob o nosso controle.
Em resposta a essa pergunta, Epiteto criou duas listas.
"As coisas que estão sob nosso controle são nossos
julgamentos, opiniões e valores que escolhemos adotar. E o que não está sob
nosso controle é todo o resto, além de tudo o que é externo", explica o
filósofo italiano Massimo Pigliucci. "O externo aqui inclui minha
reputação, minha riqueza e até meu próprio corpo".
"Você pode influenciar seu corpo, manter uma dieta
saudável, fazer exercícios. No final, porém, seu corpo não está sob seu
controle. Você pode pegar um vírus ou sofrer um acidente e quebrar sua perna".
Segundo Pigliucci, essa distinção permite perceber que se as
únicas coisas que estão sob seu controle são seus julgamentos, opiniões e
valores, é neles que você deve manter seu foco.
Estóicos: Igualitários e cosmopolitas
Uma característica importante do estoicismo, explica a
filósofa Nancy Sherman, é seu espírito igualitário.
"Eles foram os criadores do cosmopolitismo. Somos todos
iguais, num certo sentido. Todos compartilhamos uma racionalidade que existe no
universo e isso nos torna iguais. Esse pensamento acaba influindo a filosofia
política que nasce no estoicismo. É um tipo de iluminismo, de certa
maneira".
O que resulta dessa forma de ver o mundo é que o ex-escravo
Epiteto acabou influenciando um outro filósofo estóico que vinha de uma classe
social completamente diferente. Trata-se do general e imperador romano Marco
Aurélio.
"É uma grande ironia da história. Marco Aurélio, um
homem pleno de poder, privilégios e status, que liderava tropas, sentia que, de
forma a ser virtuoso, precisava praticar o estoicismo. E se inspirou em
Epiteto".
"Enquanto liderava tropas em campanhas no Danúbio, à
noite, em sua tenda, escrevia meditações para si mesmo. Eram exercícios em
auto-melhora. Com frequência (eram reflexões sobre) diminuirmos nosso senso de
poder, percebermos que honra é algo externo a você, é algo que você não pode
controlar. Reputação depende de coisas externas a você e portanto são seus
julgamentos e opiniões que interessam".
Marco Aurélio acreditava também que devíamos nos preparar
para lidar com o lado desagradável das outras pessoas, enfrentando-o com a
calma e auto-controle típicos dos estóicos. Como ele próprio escreveu no texto
a seguir.
"Começa a manhã dizendo a ti mesmo: hoje eu me
encontrarei com um homem intrometido, um ingrato, um arrogante, um enganador,
um invejoso, um antissocial. Todas estas coisas acontecem a eles por causa de
sua ignorância do que é bom e do que é mal. Mas eu que compreendo a natureza do
bem (que é desejável) e do mal (que é verdadeiramente odioso e vergonhoso), que
sei, além disso, que este transgressor é meu parente - não pelo mesmo sangue e
semente, mas por participação da mesma razão e da mesma partícula divina - eu
não posso nem ser prejudicado por qualquer deles, pois ninguém pode me fazer
incorrer no que é reprovável, nem posso me irar contra eles, cuja natureza é
tão próxima da minha. Porque nascemos para a cooperação, como os pés, como as
mãos, como as pálpebras, como as fileiras dos dentes superiores e inferiores.
Agir um contra o outro, então, é contrário à natureza; e odiá-los ou
rejeitá-los é agir um contra o outro".
As lições de resiliência que recebemos dos estóicos
inspiraram, mais recentemente, a técnica de psicoterapia conhecida como Terapia
Cognitivo-Comportamental (TCC).
Na década de 1950, desiludido com a abordagem freudiana, o
psicanalista americano Albert Ellis se inspirou em Epiteto e Marco Aurélio para
desenvolver uma nova técnica de psicoterapia tida como uma precursora da TCC.
Segundo o filósofo e terapeuta Donald Robertson, o
estoicismo e a TCC compartilham uma premissa fundamental:
"A ideia de que nossas emoções não são apenas
completamente separadas dos nossos pensamentos, crenças e juízos de valor. Mas
que nossas emoções mais fortes são, com muita frequência, determinadas pelo
tipo de juízos de valor que fazemos. E esses juízos são crenças que podem ser
verdadeiras ou falsas e portanto podemos aprender a avaliá-las, questioná-las e
alterá-las. A terapia cognitiva moderna usa uma técnica chamada de questionamento
socrático. Os estóicos usavam essa prática também. Para ajudar as pessoas a
refletirem racionalmente sobre suas crenças de forma a transformar suas
emoções".
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1. Inspirando-se nas Meditações, de Marco Aurélio, escreva
seu próprio diário filosófico (como ensinaram Sêneca e Epiteto).
Antes de ir para a cama, reflita sobre as coisas mais
importantes que aconteceram naquele dia, coisas que são importantes em termos
da sua ética pessoal. Pergunte a você mesmo: O que fiz errado? O que fiz certo?
E o que ainda precisa ser feito?
2. Exercícios de autoprivação.
Tome banho frio, embora não todos os dias. Os estóicos
faziam alguns exercícios de autoprivação, como tomar banho frio, sair no frio
sem casaco ou jejuar.
Segundo essa ideia, se você se deprivar temporariamente
dessas coisas, vai apreciá-las melhor. Vai sentir empatia com pessoas que são
privadas dessas coisas. E vai lembrar a você mesmo de que pode sobreviver a
esse tipo de situação.
(Massimo Pigliucci é autor do livro "Como Ser um
Estóico - usando a filosofia antiga para viver uma vida moderna")
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A importância que os estóicos dão ao uso da racionalidade na
vida cotidiana acabou criando uma imagem do estóico como pessoa fria,
desconectada de seus sentimentos.
Para Robertson, essa é uma interpretação superficial do
pensamento estóico.
"Em inglês moderno, o estoico acabou virando sinônimo
de pessoa reprimida, sem emoções. Mas o estoicismo, escola filosófica da
Antiguidade, é muito mais sofisticada e tem uma teoria psicológica bem mais
complexa".
O que se busca, explica o filósofo, não é a ausência da
emoção e, sim, trabalharmos sobre as emoções que estão sob nosso controle -
aquelas que derivam de nossos valores pessoais.
Mas ao propor que deixemos de lado e aceitemos tudo aquilo
que é externo, que está fora do nosso controle, essa filosofia não estaria
gerando pessoas politicamente apáticas e conformistas? - rebatem os críticos.
Em coluna na revista britânica The New Statesman, o filósofo
Jules Evans responde que não - pelo contrário:
"O estoicismo cria indivíduos que não podem ser
intimidados pelos poderosos porque não têm medo de abrir mão de tudo ou de
morrer. Na verdade, são treinados por sua filosofia para abandonar a vida sem
medo ou arrependimento, defender seus princípios racionais acima de qualquer
ameaça ou suborno".
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