Mitologia Nórdica Antiga e os Níu Heimar (Pré-Século XX)

 








1. Introdução: O Escopo da Pesquisa

Este relatório visa reconstruir a cosmologia e a mitologia nórdica com base nas fontes literárias e históricas mais antigas, datadas do período medieval (séculos XI ao XIII), que registraram o conhecimento da Era Viking (c. 793–1066 d.C.). O objetivo é isolar as narrativas pré-cristianização, filtrando a sistematização e as possíveis alterações introduzidas pelos autores cristãos do Medievo, e excluindo, como solicitado, as reinterpretações e adições acadêmicas ou culturais do último século.

As principais fontes são os manuscritos islandeses que preservaram os poemas e a prosa em Nórdico Antigo, sendo a Islândia o último bastião do paganismo.

2. Fontes Primárias e Mais Antigas (Pré-Século XX)

A visão mais pura da mitologia é obtida de textos que são, em si, compilações ou registros de tradições orais, e não trabalhos sistemáticos de teologia.

2.1. A Edda Poética (Poema)

Conhecida principalmente pelo manuscrito Codex Regius (c. 1270), esta é a coleção que contém os poemas mais arcaicos. É considerada a fonte mais próxima das crenças pré-cristãs, pois os poemas são coleções de canções anônimas, com pouca evidência de influência cristã.

 * Vǫluspá (A Profecia da Vidente): É o poema cosmológico mais importante. É a fonte fundamental para a criação, a cosmologia dos Nove Reinos, o Ragnarök e a renovação do mundo.

   * Referência Crucial: A estrofe 2 contém a menção explícita mais antiga e essencial: "Níu man eg heima, níu íviði" (Eu me lembro de nove mundos, nove troncos/raízes/ramos). Esta estrofe atesta o número nove (Níu), mas não oferece uma lista exaustiva ou ordenada dos reinos.

 * Grímnismál (Os Ditos de Grímnir): Este poema, por sua vez, lista explicitamente as moradas dos deuses, incluindo Ydalir (Ullr), Álfheimr (Freyr) e Valhǫll (Odin), servindo como base para identificar alguns dos Nove Reinos.

2.2. A Edda em Prosa (Snorri Sturluson)

Escrita por Snorri Sturluson (c. 1179–1241), político e historiador islandês, por volta de 1220. É a fonte mais completa e sistemática da mitologia.

 * Gylfaginning (A Ilusão de Gylfi): A parte cosmológica principal. Snorri buscou preservar a poesia Skáldica (poesia dos escaldos) ao fornecer o contexto mítico (conhecido como kenningar).

 * A Abordagem de Snorri: Snorri era um cristão que agiu como historiador e folclorista. Ele introduziu a Euhemerização, explicando que os Æsir (deuses) eram originalmente chefes tribais da Ásia Menor (Ás-gard), que migraram e foram deificados. Essa racionalização é a maior "alteração" medieval da mitologia, e deve ser lida com cautela para identificar os mitos pagãos subjacentes.

2.3. Historiadores e Cronistas Continentais

 * Saxo Grammaticus (Gesta Danorum, c. 1200): Historiador dinamarquês. Sua obra é altamente euhemerizada, apresentando Odin e Thor como feiticeiros ou reis que foram endeusados. Contribui para a historiografia, mas distorce o aspecto divino dos mitos.

 * Adam de Bremen (Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum, c. 1075): O cronista alemão fornece descrições contemporâneas dos rituais pagãos, notavelmente o templo de Uppsala, mencionando os sacrifícios e os ídolos de Thor, Odin e Freyr, fornecendo um vislumbre do culto pré-Escandinávia.

3. Os Níu Heimar (Nove Reinos) na Cosmologia Antiga

O conceito de Níu Heimar é o pilar da cosmologia pré-Escandinávia, todos interligados pela árvore cósmica Yggdrasil . A natureza do universo nórdico é dualista e cíclica.

3.1. A Criação: Dualidade Primordial

Os textos mais antigos (como Völuspá e Gylfaginning) descrevem a origem do cosmos a partir de dois reinos primordiais e de um vazio:

 * Ginnungagap: O abismo primordial (o Vazio Bocejante) que existia antes de tudo.

 * Niflheimr (Niflheim): O reino da névoa, do gelo e do frio, localizado no norte. De lá jorrava a fonte Hvergelmir, lar da serpente Níðhöggr.

 * Múspellsheimr (Muspelheim): O reino do fogo e do calor, localizado no sul, guardado pelo gigante de fogo Surtr.

A vida (o gigante Ymir) nasceu quando o calor de Muspelheim encontrou o gelo de Niflheim em Ginnungagap.

3.2. A Configuração dos Nove Reinos

A lista exata dos Nove Reinos não é consistente em um único texto, mas é sintetizada a partir das Eddas. No entendimento mais antigo (pré-Snorri), o conceito de "nove" era mais importante que a enumeração precisa.

| Reino (Nórdico Antigo) | Habitantes Principais | Característica e Localização |

|---|---|---|

| Ásgarðr (Asgard) | Æsir (Odin, Thor, etc.) | Mundo superior, sede dos deuses guerreiros. Conectado a Midgard pela ponte Bifröst. |

| Vanaheimr (Vanaheim) | Vanir (Freyr, Freyja, Njörðr) | Reino dos deuses da fertilidade, sabedoria e magia. Localização geralmente não especificada, mas distinto de Asgard. |

| Miðgarðr (Midgard) | Homens, Trolls (seres humanos) | "Jardim do Meio". O mundo dos mortais, situado no centro do cosmos e cercado por um oceano onde reside a serpente Jörmungandr. |

| Jǫtunheimr (Jotunheim) | Jötnar (Gigantes de Gelo e Rocha) | O "Mundo dos Gigantes", localizado além das fronteiras da ordem civilizada (Midgard), representando o caos primordial. |

| Álflheimr (Alfheim) | Ljósálfar (Elfos da Luz) | Reino associado à beleza e à fertilidade, dado a Freyr. |

| Svartálfaheimr (Svartalfheim) | Svartálfar (Elfos Escuros) | O Reino dos Elfos Escuros, frequentemente confundido/associado a Nidavellir (o reino dos Anões). |

| Niðavellir (Nidavellir) | Dvergar (Anões) | "Campos Escuros". O reino subterrâneo onde os Anões forjam os tesouros dos deuses. Snorri tende a fundir este reino com Svartalfheim. |

| Helheimr (Helheim) | Os Mortos não-gloriosos (De doença, velhice ou sem glória) | Reino governado pela deusa Hel, frequentemente imaginado como um mundo frio e escuro, localizado sob Niflheim. |

| Niflheimr (Niflheim) | Dracônico Níðhöggr | O mundo mais antigo de gelo e névoa. Na tradição mais antiga, é primordial, não necessariamente o destino dos mortos. |

| Múspellsheimr (Muspelheim) | Surtr e os Gigantes de Fogo | O mundo primordial de fogo e calor. É a fonte das faíscas que deram origem às estrelas. |

Nota Crítica: A contagem dos nove mundos varia. Algumas interpretações antigas contam Midgard e Helheim como estando dentro de Niflheim/Jotunheim, ou tratam Svartalfheim e Nidavellir como o mesmo reino, dependendo do verso da Edda Poética ou da passagem de Snorri que está sendo priorizada.

4. Conclusão: O Conhecimento Primitivo

O estudo da mitologia nórdica antiga, livre de filtros modernos, retorna invariavelmente ao Codex Regius e, com ressalvas, à Edda em Prosa. O universo nórdico pré-Escandinávia era caracterizado pela dualidade caótica (fogo e gelo), pela interconexão dos reinos através de Yggdrasil, e pela ambiguidade inerente a uma tradição que foi oral por séculos antes de ser registrada. A ideia dos Nove Reinos era um princípio organizador, mas a composição exata dessa lista era fluida, o que levou a confusões e sistematizações (como as de S

norri Sturluson) mesmo antes do século XX.

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