1. Introdução e Escopo do Estudo
O estudo da cosmologia hebraica em suas formas mais primitivas e primordiais exige a distinção entre o texto bíblico final (editado após o Exílio Babilônico, século VI a.C.) e as tradições orais e textuais mais antigas (Javista, Eloísta, etc.) que o precederam. A visão de mundo dos israelitas e hebreus primitivos, incluindo as Doze Tribos (genealogicamente fundadas em Jacó/Israel), era fortemente sincretizada com as culturas do Antigo Oriente Próximo, especialmente a cananeia e a mesopotâmica.
O cosmos primordial não era visto como criado ex nihilo (do nada), mas sim como o resultado da organização e do domínio de uma divindade sobre um caos aquático preexistente.
2. A Estrutura Cosmológica Primitiva (Visão Tripartite)
A cosmologia hebraica primitiva, inferida de textos como Gênesis 1 e referências poéticas (Salmos, Jó, Isaías), apresenta um universo rigidamente estruturado em três camadas principais, uma visão de mundo comum a muitas culturas antigas:
2.1. O Céu e as Águas Superiores (Shamayim e Raqia)
O Firmamento (Raqia): O céu é concebido como uma cúpula ou abóbada sólida, muitas vezes descrita como metal polido, cristal, ou uma placa dura que se estende sobre a Terra. Sua função primordial era sustentar e separar as águas superiores das águas inferiores.
As Águas Superiores: Acima do Raqia existe um vasto oceano celestial. A chuva e as cataratas celestiais (as "janelas do céu" mencionadas no relato do Dilúvio) são o resultado da abertura desse reservatório de água.
O Trono de El/Yahweh: Acima do firmamento reside a divindade suprema (inicialmente El, depois Yahweh).
2.2. A Terra (Eretz)
O Disco da Terra: A Terra é vista como um disco plano ou montanha que flutua sobre as águas inferiores (o Abismo). Ela está estabilizada por pilares ou fundamentos que se estendem até as profundezas.
Limites: A Terra é circundada por um oceano, o limite do mundo conhecido. A vida e a ordem se manifestam neste plano.
2.3. O Submundo (Sheol)
O Reino dos Mortos: Localizado nas profundezas sob a Terra e sob as águas inferiores. O Sheol é a morada de todas as almas, um lugar sombrio (’Afar, pó) de silêncio e inatividade, onde não há louvor a Deus nem distinções morais iniciais.
A Base Cósmica: É a camada mais baixa do cosmos, onde a divindade tem pouca ou nenhuma jurisdição ativa na tradição mais antiga.
3. O Caos Primordial: Tohu wa-Bohu e Tehom
O conceito mais primitivo e fundamental da cosmogonia hebraica é a pré-existência do caos.
Tohu wa-Bohu (Disforme e Vazio): Em Gênesis 1:2, a Terra está nesta condição antes da intervenção de Deus. O termo implica uma matéria desordenada e não diferenciada, pronta para ser moldada.
Tehom (O Abismo): O caos é personificado como o Tehom, o oceano primordial, sobre o qual o Espírito de Deus pairava. Este conceito tem raízes diretas no mito cananeu-ugarítico do deus Baal, que lutava contra Yam (o Mar/Caos), e no épico babilônico Enuma Elish, onde o deus Marduk vence a deusa Tiamat (a água salgada caótica).
O Triunfo de Yahweh: Nos Salmos e nos livros proféticos, Yahweh assume o papel de Deus guerreiro que doma o Tehom (por exemplo, na referência a Raab/Leviathan), reafirmando seu domínio sobre as forças da desordem aquática para estabelecer a Terra. Esta era a visão primordial: a criação como ordenação, não como criação ex nihilo.
4. O Contexto Cananeu e a Transição Monolátrica
A cosmologia primitiva das tribos hebraicas não era monoteísta.
El, o Pai: O deus original das tribos proto-israelitas era, em grande parte, El, a divindade suprema cananeia ("o Touro", "o Criador"), que era o líder do panteão e criador do mundo. O termo Elohim (plural de El) na Bíblia primitiva reflete essa herança.
Yahweh e a Monolatria: A ascensão de Yahweh (o Deus da Aliança e da Libertação no Êxodo) não negou imediatamente a existência de outros deuses, mas exigiu a monolatria (adoração exclusiva de Yahweh) dentro do clã ou tribo. Yahweh era o deus que impôs sua ordem cosmológica e política sobre as Doze Tribos, fazendo delas seu povo exclusivo.
As Tribos no Cosmos Teológico: As Doze Tribos são a personificação da ordem social e genealógica de Yahweh, inseridas na Terra (Eretz), o centro do cosmos. A divisão da terra prometida entre elas é um ato cosmológico de estabelecer a ordem divina no espaço terrestre. O número Doze em si é um número organizador (meses, zodíaco) que reflete a perfeição da ordem cósmica estabelecida por Deus.
5. Conclusão
A cosmologia primordial dos hebreus e das Doze Tribos pode ser resumida como uma visão de mundo tripartite herdada do Antigo Oriente Próximo, na qual o universo é uma bolha de ordem estabelecida por Yahweh (ou El/Yahweh sincretizados) sobre as forças caóticas do Abismo (Tehom).
Essa visão primitiva, focada na luta contra o caos e na estrutura rígida (céu sólido, Terra plana), permaneceu a base da compreensão do universo até ser gradualmente substituída por uma cosmologia mais abstrata e monoteísta após o Exílio Babilônico, onde Yahweh passou a ser o criador único e atemporal (ex nihilo), negando a existência real de outras divindades ou de um caos primordial eterno.
Obras Fundamentais sobre Cosmologia e Mito do Antigo Oriente Próximo
Pritchard, James B. Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (ANET). Princeton University Press, 1969.
Essencial para textos primários como o Enuma Elish (mito babilônico da criação) e textos ugaríticos (mitos de Baal), que estabelecem o contexto cosmogônico cananeu para o conceito de Tehom.
Gunkel, Hermann. Creation and Chaos in the Primeval Era and the Eschaton. Eerdmans, 2006 (originalmente 1895).
Um estudo clássico sobre a influência da mitologia do caos (derrota de um monstro marinho/dragão) nos relatos bíblicos da criação e nos Salmos, fundamental para entender a criação como "ordenação" (domínio do caos).
Walton, John H. Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible. Baker Academic, 2006.
Oferece uma comparação detalhada entre a visão de mundo israelita e seus vizinhos, focando em como os antigos entendiam a função e o propósito do cosmos.
II. História da Religião Israelita Primitiva e a Ascensão de Yahweh
Smith, Mark S. The Early History of God: Yahweh and the Other Deities in Ancient Israel. Eerdmans, 2002.
Considerado o estudo definitivo sobre a monolatria e o sincretismo, explorando as raízes de Yahweh em relação a El e Asherah e o panteão cananeu, essencial para o Contexto Cananeu (Seção 4 do seu relatório).
Dever, William G. Did God Have a Wife? Archaeology and Folk Religion in Ancient Israel. Eerdmans, 2005.
Aborda as práticas religiosas populares, incluindo o culto a Asherah, a esposa de El e possivelmente de Yahweh no Israel pré-exílico, com base em evidências arqueológicas.
Friedman, Richard Elliott. Who Wrote the Bible? HarperOne, 1997.
Embora focado na Hipótese Documentária, ajuda a distinguir as diferentes fontes (Javista, Eloísta, Sacerdotal) que carregam matizes cosmológicos distintos, permitindo identificar as versões "primitivas" (Javistas/E) dos relatos mais tardios (Sacerdotal).
III. Estudos Bíblicos e Arqueológicos sobre a Estrutura do Universo
Blocher, Henri. In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis. InterVarsity Press, 1984.
Uma análise teológica e histórica do Gênesis que lida com a estrutura cósmica tripartite (Céu, Terra, Sheol) a partir do texto hebraico.
Finkelstein, Israel e Silberman, Neil Asher. The Bible Unearthed: Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. Free Press, 2001.
Embora um estudo de história e arqueologia geral, fornece o contexto histórico e temporal para o desenvolvimento das crenças israelitas, distinguindo o período das tribos da monarquia posterior.
Tsumura, David Toshio. The Earth and the Waters in Genesis 1 and 2: A Linguistic Investigation. JSOT Press, 1989.
Focado no significado linguístico dos termos hebraicos primordiais como Tehom (Abismo) e Tohu wa-Bohu (Caos Disforme e Vazio), cruciais para a Seção 3 do relatório.




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