Cosmologia Védica vs. Hinduísmo, Budismo e Jainismo

 




Introdução

As tradições religiosas e filosóficas da Índia compartilham um contexto histórico e conceitual profundo, enraizado na literatura Védica. Este relatório examina as cosmologias da civilização Védica, contrastando-as com as subsequentes evoluções no Hinduísmo (Puranas e sistemas clássicos), Budismo e Jainismo, focando nas semelhanças fundamentais (tempo cíclico, karma) e nas divergências essenciais (criação, eternidade do cosmos).

1. Cosmologia Védica (O Fundamento: 1500–500 a.C.)

A cosmologia Védica primitiva, conforme registrada primariamente no Rigveda, é menos sistemática e mais focada na ordem cósmica estabelecida pelo sacrifício (yajña) e pela lei moral/física (Ṛta).

Conceitos Chave

 * Ṛta (Ordem Cósmica): O princípio fundamental de ordem, verdade e lei que rege o cosmos, os ciclos sazonais e o ritual. Os Devas (Indra, Varuna, Agni) são guardiões do Ṛta.

 * Purusha Sukta: O hino de criação mais famoso (Rigveda X.90) descreve a criação do universo e das castas sociais a partir do sacrifício de um ser primordial cósmico, o Purusha.

 * Aparência do Universo: O universo era visto principalmente em três reinos: Dyau (Céu), Pṛthivī (Terra) e Antariksha (Espaço Intermediário).

 * Tempo Cíclico: Embora a ênfase fosse no ciclo diário e sazonal do ritual, as sementes do tempo cósmico cíclico (regeneração e destruição) já estavam presentes.

2. Hinduísmo Clássico (Expansão e Sistematização)

O Hinduísmo (especialmente pós-Upanishads e nos Puranas) adota e expande o arcabouço Védico, introduzindo complexos ciclos de tempo e uma hierarquia detalhada de mundos.

Continuidade e Expansão

 * Tempo Cósmico Cíclico (Yugas e Kalpas): Este é o elemento de expansão mais significativo. O universo passa por ciclos intermináveis de criação e dissolução:

   * Mahayuga: Um ciclo de quatro Yugas (Satya, Treta, Dvapara, Kali).

   * Kalpa (Um Dia de Brahma): 1000 Mahayugas. É seguido por um Pralaya (dissolução).

 * Criação Teísta: O cosmos é criado por um deus pessoal (Brahma) ou se manifesta a partir do corpo de um deus transcendente (Vishnu ou Shiva). Vishnu é frequentemente visto como a fonte final do universo, que se deita sobre as águas cósmicas (Garbhodakaśāyī Viṣṇu) durante os intervalos.

 * Loka (Mundos): O universo é organizado em uma estrutura vertical complexa de 14 mundos: 7 superiores (Saptaloka) e 7 inferiores (Pātāla). O nosso plano, Bhu-loka, é o mundo médio.

 * Karma e Samsara: O motor da cosmologia é o Karma, que determina o renascimento através dos vários Lokas, buscando-se a libertação (Moksha).

3. Cosmologia Budista (Divergência: Não-Criador)

O Budismo (Theravada e Mahayana) rejeita o conceito de um criador supremo (Brahma como criador), mas aceita a realidade do tempo cíclico e dos mundos múltiplos, redefinindo-os sob a lente do Karma e da impermanência (Anicca).

Conceitos Chave

 * Não-Criador e Eternidade do Cosmos: O cosmos não é criado por uma entidade divina no início, mas é um processo sem começo nem fim, governado pela lei do Karma e da causalidade.

 * Mundos e Reinos (Loka / Trailokya): O cosmos é dividido em 31 planos de existência (Lokas), agrupados em três reinos (Trailokya):

   * Kāmaloka (Reino do Desejo): Inclui o inferno, o mundo humano e os céus inferiores.

   * Rūpaloka (Reino da Forma): Céus superiores povoados por Brahmas (seres meditativos com forma sutil).

   * Arūpaloka (Reino Sem Forma): Os céus mais altos, puramente mentais.

 * Tempo (Kalpas): Adota a ideia de Kalpas (eras cósmicas) de criação e dissolução, mas estes são vistos como manifestações causais, não como o "sopro" de um deus.

 * Monte Meru: O eixo central do universo, uma montanha cósmica em torno da qual orbitam o sol, a lua e os continentes.

4. Cosmologia Jainista (Divergência: Não-Criador e Eternidade)

O Jainismo apresenta uma cosmologia radicalmente diferente das tradições Védicas, enfatizando a eternidade e a natureza não criada do cosmos, que é composto de substâncias eternas (Dravya).

Conceitos Chave

 * Loka (Universo Eterno): O universo é denominado Loka (ou Loka-Akasha) e é eterno, não criado e auto-sustentado. Não há deus criador ou dissolução total (pralaya).

 * Substâncias Fundamentais (Dravya): O universo é feito de seis substâncias eternas: Jiva (alma/consciência) e Ajiva (não-alma, que inclui Pudgala - matéria/átomos, Dharma - movimento, Adharma - repouso, Kala - tempo e Akasha - espaço).

 * Estrutura do Loka: O universo Jainista tem uma forma definida (semelhante a um homem em pé com as mãos nos quadris), dividida em três partes:

   * Urdhva Loka (Mundo Superior): Residências celestiais e o lar dos seres liberados (Siddhashila).

   * Madhya Loka (Mundo Médio): O plano dos seres humanos e animais.

   * Adho Loka (Mundo Inferior): Os sete infernos.

 * Tempo (Avasarpini e Utsarpini): O tempo é cíclico, mas focado na qualidade moral. Ele se move em dois ciclos de 12 estágios: Avasarpini (declínio moral e físico) e Utsarpini (ascensão moral e físico).

5. Tabela Comparativa de Cosmologias

| Característica | Cosmologia Védica Primitiva | Hinduísmo Clássico | Budismo | Jainismo |

|---|---|---|---|---|

| Criador/Deus Supremo | Sim (Indra, Varuna, Purusha) | Sim (Brahma, Vishnu, Shiva) | Não (Rejeitado) | Não (Rejeitado) |

| Criação do Cosmos | Sacrifício do Purusha ou manifestação dos Devas. | Criação teísta por Brahma (Kalpa), seguida por dissolução (Pralaya). | Causalidade e Karma (processo sem começo nem fim). | Eterno, nunca criado, composto de Dravyas. |

| Natureza do Tempo | Cíclica (Sazonal, Ritualística). | Cíclica (Gigantesca: Yugas, Kalpas). | Cíclica (Kalpas de criação e destruição). | Cíclica (Evolução Moral: Avasarpini / Utsarpini). |

| Reinos de Existência | Três (Céu, Terra, Espaço). | 14 Lokas (7 Superiores, 7 Inferiores). | 31 Planos em Três Reinos (Trailokya). | Loka Estruturado (Superior, Médio, Inferior), com Siddhashila no topo. |

| Ênfase Principal | Ordem Ritual e Cósmica (Ṛta). | Devoção, Dharma, Busca por Moksha. | Impermanência (Anicca) e liberação (Nirvana). | Ética, Não-violência, Liberação da Jiva. |

6. Referências Bibliográficas (Estudos Acadêmicos)

Abaixo está uma lista de obras acadêmicas essenciais para o estudo aprofundado destas cosmologias comparadas.

Fontes Primárias e Comparativas

 * Zimmer, Heinrich. (1951). Philosophies of India. Princeton University Press. (Clássico para uma visão geral e comparativa das tradições).

 * Eliade, Mircea. (1959). Cosmos and History: The Myth of the Eternal Return. Harper Torchbooks. (Análise fundamental do tempo cíclico e da mitologia cósmica).

Cosmologia Védica e Hinduísmo

 * Flood, Gavin. (1996). An Introduction to Hinduism. Cambridge University Press. (Capítulos 3 e 4, sobre a religião Védica e os ciclos cósmicos).

 * Doniger, Wendy. (1981). The Rig Veda: An Anthology. Penguin Classics. (Inclui tradução e análise do Purusha Sukta e outros hinos de criação).

 * O'Flaherty, Wendy Doniger. (1975). Hindu Myths: A Sourcebook Translated from the Sanskrit. Penguin Classics. (Detalhamento dos mitos de criação e dissolução Puranicos).

Cosmologia Budista

 * Collins, Steven. (1998). Nirvana and Other Buddhist Felicities: Essays in the Buddhist Psychology of Imagination. Cambridge University Press. (Contém análise detalhada da estrutura dos Loka, Kalpas, e a cosmologia de Meru).

 * Gombrich, Richard F. (1988). Theravāda Buddhism: A Social History from Ancient Benares to Modern Colombo. Routledge. (Visão geral da cosmologia Theravada e sua função).

Cosmologia Jainista

 * Jaini, Padmanabh S. (2001). The Jaina Path of Purification. Motilal Banarsidass. (A obra padrão em inglês sobre o Jainismo, com capítulos dedicados à estrutura do Loka e seus elementos eternos).

 * Dundas, Paul. (2002). The Jains. Routledge. (Visão geral completa, cobrindo o conceito do universo não-criado e a divisão Jiva/Ajiva).

Nota: Os textos Puranicos (Vishnu Purana, Bhagavata Purana) e o Abhidharma budista são as fontes primárias mais detalhadas para as cosmologias do Hinduísmo e Budismo, respectivamente. Para a pesquisa acadêm

ica, as obras citadas fornecem o contexto e a análise crítica.

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