A Lenda Sincrética da Estrela Descarnada e Marte: Cosmologia Mesoamericana nas Pirâmides do México Central






Introdução

O panteão mesoamericano, especialmente o asteca (mexica) e o teotihuacano, era inseparável do cosmos. Suas pirâmides não eram apenas templos de culto, mas também observatórios e eixos de poder que alinhavam a vida terrena com os movimentos celestes. A lenda da "Estrela Descarnada, Marte que iluminava a terra" parece ser um sincretismo fascinante e poético, combinando elementos da cosmologia de Teotihuacan e da capital asteca, Tenochtitlan (a provável referência a "Teochitlan"). Enquanto a pesquisa acadêmica clássica raramente registra esta lenda com a exata formulação descrita, ela ecoa poderosamente os mitos de Vênus, a Estrela da Manhã (o verdadeiro "iluminador" celeste noturno), e Marte (o planeta vermelho da guerra e do fogo), que juntos governavam o destino do mundo e os rituais das grandes pirâmides.

O Mito da Estrela Matutina: O Brilho de Vênus e a "Descarnação"

Na cosmologia mesoamericana, o astro mais brilhante depois do Sol e da Lua era Vênus, a Estrela da Manhã e da Tarde. Longe de ser um símbolo pacífico, Vênus era temido e associado ao deus Tlahuizcalpantecuhtli, a manifestação de Quetzalcoatl. A lenda de Vênus fornece a chave mais provável para o termo "Estrela Descarnada" e "iluminava a terra".

O deus Quetzalcoatl, após seu exílio ou morte ritual, desceu ao inframundo (Mictlan) e, em seu renascimento, tornou-se a Estrela da Manhã. Durante sua jornada de morte e renascimento, ele se "descarnava" simbolicamente, atravessando os nove níveis do inframundo. O nascer helíaco de Vênus, quando a estrela reaparece no céu após um período de ausência, era visto como um evento violento e perigoso, onde Tlahuizcalpantecuhtli lançava dardos contra a humanidade. Este renascimento cíclico e traumático, que trazia uma luz intensa após a escuridão da morte, ressoa com a ideia de uma estrela que sofreu um processo de "descarnação" para, então, brilhar e "iluminar a terra".

Em Teotihuacan, embora o alinhamento principal da Pirâmide do Sol se relacione ao solstício de verão e a Pleiades, a importância dos ciclos de Vênus é fundamental. Os ciclos sinódicos da estrela (584 dias) eram cuidadosamente rastreados e impactavam diretamente o calendário e o planejamento da guerra.

Marte, a Cor Vermelha e a Pirâmide de Tenochtitlan

A inclusão de Marte na lenda remete mais diretamente à cosmologia de guerra e sacrifício asteca, centrada em Tenochtitlan e seu Templo Mayor. O planeta vermelho era frequentemente associado ao deus da guerra e do sol, Huitzilopochtli, e à cor vermelha (simbolizando o sangue e o fogo).

Enquanto Huitzilopochtli era primariamente um deus solar, ele também era uma estrela (o Sol é uma estrela) que precisava de sacrifício para continuar sua jornada noturna. A pirâmide asteca do Templo Mayor possuía duas capelas em seu ápice: uma para Tlaloc (o deus da água, simbolizando a fertilidade) e outra para Huitzilopochtli (o deus da guerra, simbolizando o fogo e o sacrifício). O Templo Mayor era o axis mundi, o ponto central que ligava o plano terrestre ao celeste. Quando o Sol (ou, por extensão, o astro vermelho da guerra, Marte) alinhava-se com o Templo Mayor em datas críticas, a ordem cósmica era reafirmada através do ritual, e a energia vital (sangue) era entregue para "iluminar" o cosmos e garantir a sobrevivência.

A lenda pode ter fundido a intensidade luminosa e o ciclo de morte/renascimento de Vênus ("Estrela Descarnada" e "iluminava a terra") com a cor e a identidade bélica de Marte (Huitzilopochtli), resultando em uma estrela que brilha com a intensidade da guerra e do renascimento.

As Pirâmides como Eixos Cósmicos

Seja a Pirâmide do Sol em Teotihuacan, com seus alinhamentos precisos, ou o Templo Mayor em Tenochtitlan, as pirâmides eram o ponto de encontro entre o céu e a terra.

Teotihuacan: Pesquisas de Anthony Aveni demonstraram que os alinhamentos não eram aleatórios. A Pirâmide do Sol, por exemplo, está sutilmente inclinada, e sua orientação lida com o calendário solar. A cidade inteira funcionava como um gigantesco observatório, onde os movimentos de Vênus e outros corpos eram usados para marcar o tempo.

Tenochtitlan: A capital asteca era uma réplica do cosmos, com o Templo Mayor no centro. A lenda de uma estrela que "iluminava a terra" era, na prática, o resultado da observação sacerdotal de planetas e estrelas que, em seus pontos críticos, se alinhavam com o pico da pirâmide, marcando o momento certo para o ritual e a renovação do tempo.

A "Estrela Descarnada, Marte que iluminava a terra" é, portanto, uma metáfora poderosa para a interconexão violenta e vital entre a vida, a morte (descarnação), a guerra (Marte) e a luz (Vênus/iluminação) – todos eventos que eram observados, previstos e controlados a partir dos eixos cósmicos das pirâmides mexicanas.

Bibliografia Completa

Livros e Periódicos:

Aveni, Anthony F. (2001). Skywatchers: A Revised and Updated Account of the History of Astronomy. University of Texas Press.

Relevância: Obra fundamental sobre arqueoastronomia, incluindo alinhamentos e observações celestes em Teotihuacan e no México Central.

Aveni, Anthony F. (2000). Empires of Time: Calendars, Clocks, and Cultures. University Press of Colorado.

Relevância: Detalha a importância dos ciclos de Vênus e sua influência no calendário e na cosmovisão mesoamericana.

López Luján, Leonardo (2005). The Offerings of the Templo Mayor of Tenochtitlan. University of New Mexico Press.

Relevância: Estudo aprofundado sobre os deuses Huitzilopochtli (Marte/Sol) e Tlaloc, e a função cosmológica do Templo Mayor.

Matos Moctezuma, Eduardo. (1988). The Great Temple of the Aztecs: Treasures of Tenochtitlan. Thames and Hudson.

Relevância: Exploração da dualidade do Templo Mayor (fogo/água, Huitzilopochtli/Tlaloc) e sua função como centro do universo asteca.

Miller, Mary, and Karl Taube. (1993). An Illustrated Dictionary of the Gods and Symbols of Ancient Mexico and the Maya. Thames and Hudson.

Relevância: Referência básica para a identificação de Tlahuizcalpantecuhtli (Vênus) e a iconografia de Marte e Huitzilopochtli.

Sahagún, Fray Bernardino de (1950–1982). Florentine Codex: General History of the Things of New Spain. 12 vols. Traduzido por Arthur J. O. Anderson e Charles E. Dibble. School of American Research e University of Utah.

Relevância: Fonte primária inestimável sobre a mitologia asteca, incluindo os mitos de Quetzalcoatl e os deuses celestes.

Fontes Online e Artigos de Acesso Aberto (Acadêmicos):

Galindo Trejo, Jesús. (1994). Arqueoastronomía en la América Antigua. Revista Arqueología Mexicana.

Relevância: Artigo que sumariza as conexões entre a astronomia e os sítios arqueológicos centrais do México.

Šprajc, Ivan. (2001). Orientaciones astronómicas en la arquitectura prehispánica del centro de México. Instituto Nacional de Antropología e Historia (INAH).

Relevância: Estudo detalhado sobre os alinhamentos astronômicos em diversos sítios, incluindo Teotihuacan.

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