​O Louva-a-Deus: A Figura Central da Criação San

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Para muitos grupos San, a figura de Kaggen (também escrito como Cagn, //Kabbo, etc.) é o ser mais importante, frequentemente traduzido como o Louva-a-Deus. No entanto, a tradução "Louva-a-Deus" não capta toda a sua complexidade, pois ele é muito mais do que um inseto.

​Natureza de Kaggen (o Louva-a-Deus)

​Criador e Transformador: Kaggen é visto como o Criador Primordial, responsável por moldar o mundo e os primeiros seres. Ele é um deus trapaceiro (trickster) e transformador, capaz de assumir muitas formas: um louva-a-deus, uma abelha, um elande (antílope), uma lebre, ou até mesmo um ser humano. Sua capacidade de se transformar reflete a fluidez e a interconexão da vida no deserto.

​Figura Ambígua: Ele é caprichoso e cheio de humor, capaz de criar e ensinar, mas também de causar confusão ou de enganar. Isso o torna um personagem fascinante, que explica tanto as maravilhas quanto as dificuldades da vida.

​O Mito da Criação e os Animais

​Embora os detalhes variem, o tema geral da criação San envolve a ação de Kaggen na formação de:

​O Sol, a Lua e as Estrelas: Em algumas narrativas, Kaggen é creditado por ter criado ou dado forma aos corpos celestes, muitas vezes através de um ato de transformação ou de magia.

​O Elande (Antílope): O elande é talvez o animal mais sagrado na mitologia San, e é frequentemente ligado a Kaggen e aos rituais de dança de cura (transe). Ele representa a fartura, a fertilidade e a energia vital.

​O Papel da Abelha e a Criação

​A Abelha tem um papel de destaque em alguns mitos, frequentemente ligada à criação da Lua e, em contextos mais específicos, à própria origem de Kaggen ou de elementos primordiais.

​A Abelha no Mito de Kaggen

​Em algumas versões dos San do Cabo, a abelha está diretamente ligada à figura de Kaggen. Um mito importante conta que, após Kaggen realizar seus atos de criação, ele foi ferido e depositado no rio.

​Nascimento ou Transformação de Kaggen: A abelha, então, assume um papel crucial ao resgatar Kaggen e ajudá-lo a se regenerar, muitas vezes deixando-o ou a seu coração em um local seguro, o que sugere uma profunda conexão entre o criador e o inseto.

​Origem da Lua: Em um famoso mito San da criação da Lua, é um Louva-a-Deus (Kaggen) que joga uma de suas sandálias velhas para o céu, e esta se transforma na Lua. Outras versões, no entanto, introduzem a abelha em atos de criação ou morte-e-renascimento, sublinhando sua importância como um ser de profunda força e ligação com o divino.

​A união do Louva-a-Deus (o mestre trapaceiro e criador) e da Abelha (símbolo de vida, mel, e, em certas narrativas, do renascimento) ilustra como os San viam a força criativa em elementos aparentemente pequenos e vulneráveis do seu ambiente.

​O Povo San e a Cultura de 80.000 Anos

​O contexto cultural San é o que torna essa mitologia tão especial.

​Ancestralidade e Ligação com a Terra

​Povo Ancestral (Khoi-San): Os San (caçadores-coletores) e os Khoi (pastores) são frequentemente agrupados como Khoi-San, e suas linhagens genéticas estão entre as mais antigas do mundo, sustentando a afirmação de que eles têm vivido no Sul da África por mais de 80.000 anos.

​Arte Rupestre: A mitologia San é vivenciada e registrada nas famosas pinturas rupestres da África Austral, que datam de milhares de anos. Essas pinturas frequentemente retratam elandes, danças de cura e figuras humanas em estado de transe, que se acredita serem xamãs (curandeiros) em comunhão com o mundo espiritual, que é o domínio de Kaggen.

​Transmissão Oral e o Desafio da Documentação

​É importante notar que a mitologia San foi preservada principalmente pela tradição oral. A documentação mais abrangente foi feita por acadêmicos e linguistas no final do século XIX, como Wilhelm Bleek e Lucy Lloyd, que registraram as histórias dos San do Cabo. Por se tratar de uma tradição oral de grupos dispersos, existem variações regionais significativas nos mitos do Kalahari (Botswana, Namíbia) em comparação com as narrativas registradas no Cabo (África do Sul).

​Em resumo, o mito da criação San do Kalahari não se concentra em um único deus distante, mas sim em um ser transformador e fluido, o Louva-a-Deus (Kaggen), cuja história se entrelaça com a Abelha e outros animais sagrados, como o Elande, refletindo a íntima e ancestral ligação do povo San com a natureza.


𝗞𝗔𝗚𝗚𝗘𝗡: 𝗢 𝗖𝗥𝗜𝗔𝗗𝗢𝗥 𝗗𝗢 𝗨𝗡𝗜𝗩𝗘𝗥𝗦𝗢 𝗡𝗔 𝗖𝗢𝗦𝗠𝗢𝗩𝗜𝗦𝗔̃𝗢 𝗞𝗛𝗢𝗜𝗦𝗔𝗡 


“ 𝐴 ℎ𝑖𝑠𝑡𝑜́𝑟𝑖𝑎 𝑠𝑜𝑏𝑟𝑒 𝑎 𝑐𝑟𝑖𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑑𝑜 𝑢𝑛𝑖𝑣𝑒𝑟𝑠𝑜”


A cosmovisão dos povos Khoisan, especialmente do grupo San, sobre a criação do universo e da humanidade está profundamente entrelaçada com suas ricas tradições orais e sua íntima conexão com a natureza. No centro dessa mitologia está 𝗞𝗮𝗴𝗴𝗲𝗻, também conhecido como o 𝐿𝑜𝑢𝑣𝑎-𝑎-𝐷𝑒𝑢𝑠",uma figura divina que desempenha o papel tanto de criador quanto de trapaceiro.


É importante destacar que a visão da criação varia entre os diversos povos africanos, mas, como entre os San, há sempre uma figura central responsável por moldar os céus e a terra. Neste artigo, vamos explorar e compreender a cosmovisão dos povos San sobre a criação do universo, mergulhando na complexidade e profundidade de suas crenças ancestrais.


𝗞𝗮𝗴𝗴𝗲𝗻 𝗼 𝗰𝗿𝗶𝗮𝗱𝗼𝗿 𝗱𝗼 𝘂𝗻𝗶𝘃𝗲𝗿𝘀𝗼


Kaggen é uma divindade complexa, que muitas vezes assume a forma de um louva-a-deus, mas também pode se transformar em outros animais, como o elande (um grande antílope) ou um besouro. Na cosmovisão Khoisan, Kaggen é responsável pela criação do universo a partir do caos primordial. Ele molda o mundo físico — montanhas, rios, céus, e todas as formas de vida — utilizando seu poder divino.


𝗔 𝗖𝗿𝗶𝗮𝗰̧𝗮̃𝗼 𝗱𝗼 𝗨𝗻𝗶𝘃𝗲𝗿𝘀𝗼 𝗻𝗮 𝗰𝗼𝘀𝗺𝗼𝘃𝗶𝘀𝗮̃𝗼 𝗞𝗵𝗼𝗶𝘀𝗮𝗻


A criação do universo pelos Khoisan começa com Kaggen trazendo ordem ao caos. No início, havia apenas escuridão e vazio. No entendo Kaggen, com sua habilidade de se transformar, começa a criar do vazio o mundo ao seu redor. Ele cria a Terra, molda as montanhas e cavidades, e dá forma aos rios e oceanos. Ele cria as plantas, que se tornam uma fonte vital de sustento, e os animais, cada um com um propósito no ciclo da vida.


𝗔 𝗖𝗿𝗶𝗮𝗰̧𝗮̃𝗼 𝗱𝗼𝘀 𝗛𝘂𝗺𝗮𝗻𝗼𝘀


Os seres humanos, segundo a mitologia dos Khoisan, foram criados a partir do solo da Terra por Kaggen. Ele moldou os primeiros humanos com suas próprias mãos, usando o barro, que é visto como uma substância viva e sagrada. Depois de moldar os humanos, Kaggen lhes deu vida e consciência, ensinando-os a viver em harmonia com o ambiente natural.


Os San acreditam que os humanos, assim como todos os seres vivos, são parte de um grande ciclo natural. Eles foram criados para viver em equilíbrio com a natureza, respeitando os outros seres e o meio ambiente. As histórias de Kaggen geralmente incluem lições sobre como os humanos devem se comportar, mostrando as consequências de se desviar da harmonia natural.


𝗞𝗮𝗴𝗴𝗲𝗻, 𝗼 𝗧𝗿𝗮𝗽𝗮𝗰𝗲𝗶𝗿𝗼 𝗲 𝗼 𝗚𝘂𝗮𝗿𝗱𝗶𝗮̃𝗼


Além de ser o criador, Kaggen também é visto como um trapaceiro, uma figura que desafia as normas e cria situações inesperadas. Essa dualidade é comum em muitas tradições, onde o trapaceiro não é apenas uma figura maliciosa, mas também um professor que, através de suas ações imprevisíveis, ensina lições valiosas.


Em uma das histórias, Kaggen cria o elande, o maior e mais importante dos antílopes para os San, que é visto como uma fonte de alimento sagrada. Ele coloca o elande na Terra e ensina os humanos a caçar, mas apenas de forma respeitosa e sustentável. Esse ensinamento reflete a importância da caça e da coleta na vida dos San, sempre respeitando as regras naturais impostas por Kaggen.


𝗔 𝗖𝗼𝗻𝗲𝘅𝗮̃𝗼 𝗘𝘀𝗽𝗶𝗿𝗶𝘁𝘂𝗮𝗹


Na cosmovisão dos Khoisan, Kaggen não é apenas o criador distante, mas uma presença ativa e espiritual no mundo. Ele está envolvido na vida cotidiana das pessoas e é uma figura que conecta o material ao espiritual. As práticas espirituais e rituais dos San muitas vezes envolvem invocar Kaggen para obter orientação, proteção e sucesso na caça.

Os San acreditam que após a morte, os espíritos retornam à terra e continuam a fazer parte do ciclo natural, mantendo uma conexão com Kaggen e a criação. A Terra, sendo sagrada, é o lugar de origem e retorno para todos os seres, e a existência humana é vista como um breve estágio em um ciclo maior de vida.


A cosmovisão dos Khoisan, com Kaggen no centro, destaca a interconexão entre todos os seres vivos e a natureza. A criação do universo e dos humanos é vista não apenas como um ato divino, mas como um processo contínuo de equilíbrio e respeito. Kaggen, com sua natureza dupla de criador e trapaceiro, ensina aos Khoisan a importância da harmonia com o mundo natural e as lições que podem ser aprendidas através das complexidades da vida.


Obras Clássicas e Fundamentais

1. Contos e Folclore (A Fonte Original)

Título: Specimens of Bushman Folklore (Espécimes do Folclore Bosquímano [San])

Autores: Wilhelm Heinrich Immanuel Bleek e Lucy C. Lloyd.

Ano: Publicado originalmente em 1911 (existem reedições).

Relevância: Esta é uma das coleções mais importantes de mitos e contos dos San (Bosquímanos), compilada a partir de narrativas orais. É uma fonte primária crucial para entender a cosmologia, as divindades (como o deus-criador Kaggen ou Cagn) e as narrativas estelares.

2. Estudos Etnográficos

Título: Bochimanes !khū de Angola. Estudo Etnográfico

Autor: Manuel Viegas Guerreiro.

Ano: 1968.

Relevância: Embora o título use o termo antigo "Bochimanes" e se concentre no grupo !Khū em Angola, a obra oferece um estudo etnográfico detalhado que certamente aborda aspectos da cultura, religião e, por extensão, da cosmologia deste grupo San.

Estudos Mais Recentes e Temáticos (Cosmologia e Astronomia Cultural)

3. Astronomia Cultural (Série Educacional)

Coleção: "AfroCéus: os Céus Khoisan"

Autor: Paulo Henrique Colonese (em uma das séries, pelo menos).

Relevância: Trata-se de uma série educacional que busca resgatar e difundir os conhecimentos astronômicos e mitológicos dos povos africanos, com um foco específico nos Khoisan. Artigos e capítulos desta série abordam tópicos como:

"A menina primordial que criou o caminho de estrelas"

"O caçador Khoisan AOB" (referente à constelação de Órion, segundo as narrativas)

4. Artigos e Teses sobre Cultura e Representação

Embora não foquem exclusivamente na cosmologia, esses estudos tangenciam o tema ao explorar a visão de mundo e as narrativas Khoisan:

Obra: Miscast: Negotiating the Presence of the Bushmen

Organização/Edição: Pippa Skotnes.

Relevância: Esta obra discute como a cultura e as pessoas San foram representadas, tocando em temas de espiritualidade e apropriação cultural, o que exige a compreensão das narrativas cosmológicas e espirituais dos povos.

Artigos em Revistas Acadêmicas: Procure por periódicos de Antropologia, Estudos Africanos e História Cultural. Tente buscar por termos-chave como:

"Cosmologia San"

"Mitologia Khoikhoi"

"Religião Khoisan"

"Xamanismo San"

Dicas de Pesquisa Adicionais

Como a cosmologia Khoisan está profundamente ligada aos seus mitos e lendas, procure também por:

Livros de Contos Populares: Livros que reúnem mitos e lendas da África do Sul, Namíbia e Botsuana, pois a maior parte do conhecimento cosmológico é transmitida oralmente e registrada nessas compilações.

Termos Específicos: Use termos como "Kaggen" (o deus-criador-trapaceiro de muitos San) ou "Tsui //Goab" (uma divindade dos Khoikhoi) em suas buscas.

Universidades e Centros de Estudo: Verifique as publicações de centros de estudos africanos (no Brasil, como a USP, ou internacionalmente) que frequentemente traduzem ou publicam artigos sobre esses temas.

Estes materiais devem servir como um excelente ponto de partida para aprofundar seu conhecimento na rica e antiga cosmologia dos povos Khoisan.

          

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