(Novos documentos sobre os nazistas no Brasil
(Novos documentos contam a história do Partido Nazista no Brasil de Vargas)
por Marcelo Carneiro
Em agosto de 1942, logo após o Brasil declarar apoio aos países aliados na guerra contra Hitler, o alemão Otto Braun foi levado para uma das celas do Departamento Especializado de Ordem Política e Social (Deops), em São Paulo. Permaneceu ali até fevereiro do ano seguinte, em regime de "rigorosa incomunicabilidade", nos termos do regime imposto pela feroz ditadura Vargas. Durante todo esse período, Braun não pôde falar com a família nem com amigos, mas o que disse aos agentes do Deops acaba de entrar para a história, mais de meio século após o fim da II Guerra Mundial. Ele entregou, nome a nome, todos os integrantes do Partido Nazista no Brasil, inclusive os que ocupavam cargos de direção. O depoimento de Otto Braun, que foi tesoureiro e membro da direção nacional do partido, só veio à luz agora. O documento é uma das preciosidades garimpadas pela historiadora paulista Ana Maria Dietrich, da Universidade de São Paulo (USP), entre os papéis do extinto Deops, atualmente sob a guarda do Arquivo do Estado de São Paulo. O esforço da pesquisadora, que passou seis anos escarafunchando uma montanha de dossiês e prontuários, resultou em uma tese de mestrado com 300 páginas. É o primeiro estudo a revelar, de maneira pormenorizada, como os nazistas estavam estruturados no Brasil, com direito até a uma organização partidária. "Trata-se de um trabalho inédito, não só pelas novas informações sobre o tema, mas pelos documentos que vieram a público", diz a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, uma das maiores especialistas no período e orientadora da tese de Ana Maria Dietrich.
O papel de alemães como Otto Braun na disseminação das teses nazistas no Brasil é um capítulo importante na dissertação da historiadora. Morando no Brasil desde 1924, Otto Braun esteve no Deops por duas vezes, em 1942 e em 1944. Seus depoimentos não serviram apenas para desmantelar toda a estrutura do partido no país. A polícia também descobriu uma sofisticada operação de remessa ilegal de recursos do Brasil para o esforço de guerra do III Reich. Funcionário da filial brasileira do Banco Alemão Transatlântico, Otto Braun coordenava uma série de transações em câmbio negro. O dinheiro de alemães residentes no Brasil era enviado para cofres na Suíça e de lá chegava à Alemanha. Nesse período, o partido também estimulava a volta de alemães ao país natal. Nos dossiês do Deops, os policiais relatam que, durante as reuniões nazistas, os alemães se referiam ao Brasil como a gastland, ou terra de hospedagem.
Mas os relatórios dos agentes não são, nem de longe, os documentos mais importantes. O material fotográfico e de propaganda nazista, recolhido em apreensões nas residências dos alemães suspeitos. pode ser considerado relíquia. É praticamente o que resta da presença, no Brasil, do Partido Nazista. Apesar de nunca ter sido registrada oficialmente, a agremiação não só tinha estatuto e quadro de direção - nos níveis nacional, estadual e municipal - como era reconhecida pelo governo Vargas. Em 1938, quando o presidente vedou aos estrangeiros a participação política, entrou na clandestinidade. A Alemanha, por intermédio da embaixada, obrigou os dirigentes do partido a enviar ao país todo tipo de documento que pudesse revelar os planos de Hitler em relação ao Brasil. A determinação era clara: qualquer alemão que fosse preso no Brasil com material nazista não teria nenhum apoio do governo de seu país. A medida não impediu que a polícia política paulista apreendesse desde cartilhas da juventude hitlerista até órgãos oficiais do Partido Nazista no Brasil, como o jornal Deutscher Morgen, ou Aurora AIemã. Em Presidente Bernardes,. no interior de São Paulo, os policiais encontraram fotos do alemão Frederich Dierken em que crianças ensaiam a saudação nazista.
Até hoje, os historiadores que se debruçaram sobre o tema tinham certeza da existência de um Partido Nazista no Brasil, com forte atuação nas décadas de 30 e 40. Nada sabiam, porém. sobre seus dirigentes. Nos anos 30, o partido estava estruturado em alguns dos principais Estados brasileiros, como Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e também no Rio de Janeiro, então capital federal. Mas quase 30% de seus filiados moravam em São Paulo. Isso permite supor que o material do Deops na capital paulista - a principal base de informações da tese de Ana Maria Dietrich - seja o mais completo sobre a presença do Partido Nazista no Brasil. Esses documentos estão entre as melhores fontes de pesquisa disponíveis sobre momentos históricos do país, como a era Vargas ou o regime militar pós-1964. No caso da historiadora, a opção foi estudar um período que se estendeu de 1937 a 1945, quando o governo de Getúlio Vargas teve uma política pendular em relação à Alemanha.
Hitler não era um adversário do Brasil até 1942. Muito pelo contrário. Em 1938, a Alemanha abocanhava uma fatia de 22% do comércio exterior brasileiro. Justamente nesse ano, Vargas editou uma série de decretos-lei restringindo a participação política de estrangeiros no país. As primeiras prisões, porém, só ocorreram a partir de 1942, quando finalmente o Brasil resolveu aliar-se aos Estados Unidos. Nos documentos do Deops fica clara a posição dúbia do governo. Para Ana Maria Dietrich, de 28 anos, o mergulho nos arquivos da polícia política da era Vargas foi também oportunidade de exorcizar alguns fantasmas. Seu avô, Erich Dietrich, um alemão que havia emigrado na década de 20 para o Brasil, retomou à Alemanha em 1938 e foi convocado para lutar no Exército hitlerista. Combateu na África, na Itália e na Rússia, onde acabou preso. No texto de apresentação da tese, Ana Maria confessa que nunca conseguiu falar sobre esse tema com avô, que morreu há três anos. "Preferi desvendar a história de outra maneira", conta a historiadora.
Fonte: Veja, São Paulo, 14 de novembro de 2001, p.81-82.
por Marcelo Carneiro
Em agosto de 1942, logo após o Brasil declarar apoio aos países aliados na guerra contra Hitler, o alemão Otto Braun foi levado para uma das celas do Departamento Especializado de Ordem Política e Social (Deops), em São Paulo. Permaneceu ali até fevereiro do ano seguinte, em regime de "rigorosa incomunicabilidade", nos termos do regime imposto pela feroz ditadura Vargas. Durante todo esse período, Braun não pôde falar com a família nem com amigos, mas o que disse aos agentes do Deops acaba de entrar para a história, mais de meio século após o fim da II Guerra Mundial. Ele entregou, nome a nome, todos os integrantes do Partido Nazista no Brasil, inclusive os que ocupavam cargos de direção. O depoimento de Otto Braun, que foi tesoureiro e membro da direção nacional do partido, só veio à luz agora. O documento é uma das preciosidades garimpadas pela historiadora paulista Ana Maria Dietrich, da Universidade de São Paulo (USP), entre os papéis do extinto Deops, atualmente sob a guarda do Arquivo do Estado de São Paulo. O esforço da pesquisadora, que passou seis anos escarafunchando uma montanha de dossiês e prontuários, resultou em uma tese de mestrado com 300 páginas. É o primeiro estudo a revelar, de maneira pormenorizada, como os nazistas estavam estruturados no Brasil, com direito até a uma organização partidária. "Trata-se de um trabalho inédito, não só pelas novas informações sobre o tema, mas pelos documentos que vieram a público", diz a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, uma das maiores especialistas no período e orientadora da tese de Ana Maria Dietrich.
O papel de alemães como Otto Braun na disseminação das teses nazistas no Brasil é um capítulo importante na dissertação da historiadora. Morando no Brasil desde 1924, Otto Braun esteve no Deops por duas vezes, em 1942 e em 1944. Seus depoimentos não serviram apenas para desmantelar toda a estrutura do partido no país. A polícia também descobriu uma sofisticada operação de remessa ilegal de recursos do Brasil para o esforço de guerra do III Reich. Funcionário da filial brasileira do Banco Alemão Transatlântico, Otto Braun coordenava uma série de transações em câmbio negro. O dinheiro de alemães residentes no Brasil era enviado para cofres na Suíça e de lá chegava à Alemanha. Nesse período, o partido também estimulava a volta de alemães ao país natal. Nos dossiês do Deops, os policiais relatam que, durante as reuniões nazistas, os alemães se referiam ao Brasil como a gastland, ou terra de hospedagem.
Mas os relatórios dos agentes não são, nem de longe, os documentos mais importantes. O material fotográfico e de propaganda nazista, recolhido em apreensões nas residências dos alemães suspeitos. pode ser considerado relíquia. É praticamente o que resta da presença, no Brasil, do Partido Nazista. Apesar de nunca ter sido registrada oficialmente, a agremiação não só tinha estatuto e quadro de direção - nos níveis nacional, estadual e municipal - como era reconhecida pelo governo Vargas. Em 1938, quando o presidente vedou aos estrangeiros a participação política, entrou na clandestinidade. A Alemanha, por intermédio da embaixada, obrigou os dirigentes do partido a enviar ao país todo tipo de documento que pudesse revelar os planos de Hitler em relação ao Brasil. A determinação era clara: qualquer alemão que fosse preso no Brasil com material nazista não teria nenhum apoio do governo de seu país. A medida não impediu que a polícia política paulista apreendesse desde cartilhas da juventude hitlerista até órgãos oficiais do Partido Nazista no Brasil, como o jornal Deutscher Morgen, ou Aurora AIemã. Em Presidente Bernardes,. no interior de São Paulo, os policiais encontraram fotos do alemão Frederich Dierken em que crianças ensaiam a saudação nazista.
Até hoje, os historiadores que se debruçaram sobre o tema tinham certeza da existência de um Partido Nazista no Brasil, com forte atuação nas décadas de 30 e 40. Nada sabiam, porém. sobre seus dirigentes. Nos anos 30, o partido estava estruturado em alguns dos principais Estados brasileiros, como Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e também no Rio de Janeiro, então capital federal. Mas quase 30% de seus filiados moravam em São Paulo. Isso permite supor que o material do Deops na capital paulista - a principal base de informações da tese de Ana Maria Dietrich - seja o mais completo sobre a presença do Partido Nazista no Brasil. Esses documentos estão entre as melhores fontes de pesquisa disponíveis sobre momentos históricos do país, como a era Vargas ou o regime militar pós-1964. No caso da historiadora, a opção foi estudar um período que se estendeu de 1937 a 1945, quando o governo de Getúlio Vargas teve uma política pendular em relação à Alemanha.
Hitler não era um adversário do Brasil até 1942. Muito pelo contrário. Em 1938, a Alemanha abocanhava uma fatia de 22% do comércio exterior brasileiro. Justamente nesse ano, Vargas editou uma série de decretos-lei restringindo a participação política de estrangeiros no país. As primeiras prisões, porém, só ocorreram a partir de 1942, quando finalmente o Brasil resolveu aliar-se aos Estados Unidos. Nos documentos do Deops fica clara a posição dúbia do governo. Para Ana Maria Dietrich, de 28 anos, o mergulho nos arquivos da polícia política da era Vargas foi também oportunidade de exorcizar alguns fantasmas. Seu avô, Erich Dietrich, um alemão que havia emigrado na década de 20 para o Brasil, retomou à Alemanha em 1938 e foi convocado para lutar no Exército hitlerista. Combateu na África, na Itália e na Rússia, onde acabou preso. No texto de apresentação da tese, Ana Maria confessa que nunca conseguiu falar sobre esse tema com avô, que morreu há três anos. "Preferi desvendar a história de outra maneira", conta a historiadora.
Fonte: Veja, São Paulo, 14 de novembro de 2001, p.81-82.
Comentários
Postar um comentário
COMENTE AQUI